A tempestade das bênçãos

"Sabemos que há homossexuais, trans e outros. E impõe-se tratar essa realidade com naturalidade"

Foi e é uma tempestade, com padres e bispos a recusar dar essa bênção e até com cardeais a considerar Fiducia Supplicans um documento “erróneo, herético, blasfematório”

"Já me aconteceu dar uma bênção e admitir esses casais à comunhão. Aliás, Francisco já deu orientações para estes casos"

"Porque é que não hão-de ser acolhidos? Assim, na sequência do seu casamento civil, já dei, com todo sentido de responsabilidade, uma bênção, numa celebração em família, a um casal de lésbicas, pessoas cristãs, com o sentido da responsabilidade, dedicadas ao trabalho generoso pelos outros, no cumprimento do dever

Las bendiciones que brotan de la vida sin necesidad de mediación eclesial
Las bendiciones que brotan de la vida sin necesidad de mediación eclesial

1. Penso que para ninguém faz sentido casar por um período determinado de tempo. É perfeitamente claro que não há casamentos a prazo, ele é para a vida toda: “até que a morte nos separe.” O que se passa é que a vida é o que é e pode acontecer que de facto tenha um termo, podendo mesmo chegar a um ponto em que a separação pode ser até obrigatória — quando há violência, por exemplo, e a educação dos filhos está em perigo.

Nestas circunstâncias, como aliás tinha escrito Bento XVI quando era apenas o professor Joseph Ratzinger, desde que tenham sido satisfeitos todos os deveres de justiça em relação com o primeiro casamento, por exemplo, no caso de haver filhos, e se há um novo amor, com verdadeiro compromisso na dignidade e na fidelidade cristãs e se os filhos são educados na fé cristã, já me aconteceu dar uma bênção e admitir esses casais à comunhão. Aliás, Francisco já deu orientações para estes casos.

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Fui durante muito tempo professor de Antropologia Filosófica, e hoje é sabido que há homossexuais. Porque é que não hão-de ser acolhidos? Assim, na sequência do seu casamento civil, já dei, com todo sentido de responsabilidade, uma bênção, numa celebração em família, a um casal de lésbicas, pessoas cristãs, com o sentido da responsabilidade, dedicadas ao trabalho generoso pelos outros, no cumprimento do dever. Na celebração, prometeram e juraram amor nas horas boas e nas horas más, respeito e fidelidade até à morte, e a graça de Deus foi invocada para as suas vidas em comum. É claro que para mim não foi um sacramento no sentido litúrgico-canónico, mas nem por isso deixou de ser um sacramento — Santo Agostinho falou em dezenas de sacramentos —, no sentido mais profundo da palavra: um sinal visível da presença e da actuação de Deus.

2. Estando a Igreja a caminho da celebração no próximo mês de Outubro da segunda sessão do Sínodo dos Bispos, com voz e voto também de leigos e leigas, precisamente sobre a sinodalidade da Igreja, constituiu uma surpresa para quase todos a publicação no passado dia 18 de Dezembro da declaração Fiducia supplicans (Confiança suplicante), um texto assinado pelo cardeal Víctor Manuel Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, e aprovado pelo Papa Francisco, autorizando os bispos, os padres e os diáconos a abençoar ”casais em situação irregular”, como os divorciados recasados e os casais homossexuais. É sobretudo a admissão da possibilidade da bênção dos casais do mesmo sexo que tem levantado um clamor de críticas.

Foi e é uma tempestade, com padres e bispos a recusar dar essa bênção e até com cardeais a considerar Fiducia Supplicans um documento “erróneo, herético, blasfematório”.

Não há de modo nenhum razão para essas críticas, como não se cansa de repetir o cardeal Víctor Fernández. Mas a questão tem particular relevância na África onde a homossexualidade é interdita em 32 países e nalguns o simples facto de se declarar gay pode levar à prisão. O prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, que mostra compreensão para casos como este, não se tem cansado em desfazer equívocos.

Fica aí uma síntese da entrevista bem esclarecedora a Religión Digital. À pergunta: “abençoa-.se as pessoas ou também os casais”, respondeu: “A Declaração diz até à exaustão que há um só matrimónio (homem-mulher, indissolúvel, etc). Diz que esse é o único contexto adequado das relações sexuais. Diz que se deve evitar as bênçãos ritualizadas que poderiam levar à confusão. Parece-me estranho que se possa interpretar mal um texto tão clássico. Explica que se abençoa o casal, essas duas pessoas que se apresentam, mas não a união em si mesma. Vê-se que é um tema que provoca urticárias.”

Francisco, con el cardenal Fernández y el responsable de la sección doctrinal de Doctrina de la Fe
Francisco, con el cardenal Fernández y el responsable de la sección doctrinal de Doctrina de la Fe | Vatican Media

O que responde aos bispos que dizem que a Declaração é inoportuna, desnecessária (já em 2021 se tinha falado do tema), que defrauda? Resposta: “Em 2021 dizia-se que só se podia abençoar os indivíduos separadamente. Aqui, diz-se que na realidade podem estar os dois juntos, porque este tipo de bênçãos pastorais, não rituais, não pretendem validar nada. Por outro lado, o texto nunca fala de abençoar “a união”, coisa que se exclui com base na doutrina tradicional da Igreja, mas se abençoa essas duas pessoas que estão em casal, e pede-se para esse casal saúde, trabalho, paciência, e que possam viver cada vez com maior fidelidade ao Evangelho.” Com uma oração semelhante a esta, esclareceu noutra ocasião: “Senhor, olha estes teus filhos, concede-lhes saúde, trabalho, paz, ajuda mútua. Livra-os de tudo o que contradiz o Evangelho e concede-lhes viver segundo a tua vontade. Amém.”

3. Sabemos que há homossexuais, trans e outros. E impõe-se tratar essa realidade com naturalidade, e todas as pessoas são dignas de respeito, atendendo inclusivamente ao que sofreram ao longo dos tempos.

Neste contexto, pergunto: quando um casal de homossexuais, na verdade da dignidade, sem relativismo moral, sem confusões nem exibicionismo, pede uma bênção, não é uma bênção para a sua união? Então, como ficou dito, não se trata de um sacramento? Respondo, citando o jesuíta Juan Masiá: “Toda a vida da Igreja é sacramento como participação no Sacramento Radical que é Jesus Cristo, Sacramento do encontro com Deus... Na união civil de baptizados e a bênção eclesial (não canónica, mas eclesial) de casais ‘”irregulares”, pode haver autêntico sacramento (em contexto eclesial, no melhor sentido da palavra)”.

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